Monocultivo de eucalipto gera escassez de água no Vale do Jequitinhonha
- Ronaldo Filho
- 24 de jun.
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Projeto instituído pelo governo militar, no ano de 1970, atrapalha o cotidiano de quilombos no Vale do Jequitinhonha por falta de água
Por: Ronaldo Filho

A comunidade quilombola do Curtume sofre com a escassez de água no município de Jenipapo de Minas, Vale do Jequitinhonha, gerada pelo plantio desordenado de eucalipto durante as últimas cinco décadas. O projeto de monocultivo desta árvore teve início nos anos 70, durante o regime militar, que prometeu à população que a ideia era arrecadar dinheiro para a região nordeste de Minas Gerais.
— Tem um projeto político de longa data, quando o governo do estado criou a tal da “revolução verde”, em que cede várias áreas de terra devolutas para a plantação de eucalipto — disse Agda Marina
Agda Marina, 39 anos, é doutora em saúde coletiva da Fiocruz e ajuda a comunidade quilombola do Curtume na luta contra a ausência de água. Com visitas semanais no Curtume, ela realiza pesquisas sobre a saúde da população originária e faz parte do segmento de um projeto da Fundação Oswaldo Cruz que estuda sobre saneamento básico e políticas públicas para essa região
— A água tinha abundância até certo momento, há 15 anos atrás. Então, não seria correto a gente afirmar que lá (Vale do Jequitinhonha) o problema é a seca. — complementa Agda
Ronaldo Tavares, de 52 anos, reside no quilombo do Curtume desde que nasceu, em 1972. Ao longo dos anos, viu as minas e os riachos que cercam o quilombo secarem. Uma das preocupações dele são os seis filhos e entende que a falta de água é um dos fatores que atrapalha o desenvolvimento da família
— Eu tenho filhos pequenos que estudam na escola, e como eu vou limpar o uniforme deles se não tem água? Tem dias que todos os uniformes da escola estão sujos — contou Ronaldo
Na região de Jenipapo de Minas, município em que fica localizado o quilombo do Curtume, há uma grande presença de chapadas, que geologicamente são relevos elevados e de topo plano. Esse tipo de terreno é conhecido como área de recarga, que suga a água da chuva para abastecer as nascentes dos rios da região. Porém, a monocultura de eucalipto atrapalha o reabastecimento da água.
Durante a realização do projeto e convivência com a comunidade quilombola, Agda revelou ter se deparado com um situação de água, em grande quantidade, represada em barragens.
— Não só em Jenipapo de Minas, como em outros municípios também, têm barragens de perenização de rios que não tem nenhum uso, elas simplesmente foram construídas para reter água e estão paradas — revelou Agda
No final do mês de abril deste ano, Ronaldo se reuniu com o prefeito de Jenipapo de Minas, Edson Honorato Figueiró. Nessa conversa, uma das pautas foi justamente as barragens que estavam sem uso e Edson prometeu um projeto para reabastecer os quilombos com as águas que estão represadas.
A ideia do planejamento é dar o gerenciamento da água para a Copanor, empresa responsável por atender as regiões norte e nordeste do estado de Minas Gerais com os serviços de abastecimento de água tratada, coleta e tratamento de esgotos sanitários. Diante disso, a água será deslocada para Monte Alegre, morro próximo a barragem, e vai descer direto para a comunidade quilombola do Curtume, que irá ajudar nos abastecimento das comunidades vizinhas. Esse projeto é para suprir a falta dos rios e minas que secaram ao longo dos anos.
—- O córrego que secou era nascente do riacho, que descia aqui (Curtume). O riacho era dentro da comunidade quilombola da Cabeceira, e ele descia e ia até o lado do município de Badaró. Dentro da comunidade aqui também tinham várias minas que secaram. —- relembra Ronaldo
Com 40 minutos de distância de Jenipapo de Minas, o município de Berilo é onde fica o quilombo Mocó dos Pretos, que também sofre com a falta de água. A secretária de cultura do município de Berilo, Sanete Esteves, 51 anos, reside no Mocó dos Pretos desde os 11 meses de vida. A rotina desse movimento quilombola sofreu com diversas mudanças na rotina diante da crise climática.
—- Fartura pra gente era agricultura familiar, onde as famílias sobreviviam do que plantavam e colhiam. Da criação de frango caipira, alguma pesca e algumas caças também. Hoje já ficou muito mais difícil, o clima mudou. Já não se colhe a quantidade que planta, e quando colhe é muito pouco —- conta Sanete
Uma atividade comum, recentemente, dos moradores rurais é fazer pequenas barragens para reaproveitar ao máximo a água, pela necessidade hídrica das famílias no Vale do Jequitinhonha, que, de acordo com Sanete, começou a piorar no início dos anos 2000.
A mudança do clima também afetou as tradições e saberes do Mocó dos Pretos. A culinária foi afetada, a canjica feita com o milho, os biscoitos com a goma, a gordura do porco e a criação de galinhas caipiras não existem mais. Os cantos que eram entoados quando iam buscar lenha e águas nos rios também não ocorrem mais. Sanete explica que a implementação da “tecnologia” atrapalha o cotidiano deles, que atualmente as pessoas não tem mais tempo de sentar na porta para cantar uma cantiga, trocar instrumentos e cânticos de roda
—- O que eu me refiro à tecnologia? Hoje todo mundo acha que tem água, quando tem na torneira. Nós quilombolas nunca tivemos água na torneira, a gente buscava na mina, no rio e nos córregos. Por que a gente sempre preservou? Porque 40 litros de água servia para uma família de 10 pessoas e dava. E hoje nós temos torneira, não temos água e não conseguimos sobreviver com essa escassez. Não estamos sabendo viver com a inovação, sobra tempo mas gastamos com a tecnologia —- explica Sanete
Para Sanete, um futuro melhor depende do investimento nos jovens e na educação deles. Uma filha dela, cursou enfermagem, se especializou em gestão hospitalar, fez o estágio no município de Berilo e tem vontade de fazer o mestrado sobre os movimentos quilombola e como melhorar a saúde deles.
—- Mas a gente tem outros casos do município de Berilo, que a pessoas foi, se formou em direito e ele dá palestras falando sobre como é a vida fora dos quilombos. E tem essa devolutiva das pessoas que voltam e conscientiza mostrando que o melhor lugar para se viver é onde nós estamos e não onde estamos querendo buscar —- conta Sanete
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